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Quantas toneladas de ferro terão entrado no porto de Lisboa no ano de 1910?

Walter Benjamin, nas aturadas reflexões sobre a importância material do ferro na construção e na arquitectura da Paris oitocentista, dá-nos conta das quantidades daquele minério que entraram sucessivamente na cidade, em 1848, em 1862, em 1864 e em 18671. O ferro era o material do futuro e o século XIX tinha, com efeito, consagrado essa dialéctica entre tradição e progresso como um verdadeiro casamento burguês, de conveniência. Comentando a boda, Giedion, referindo-se também a França, juntaria de resto pormenores de intimidade, sublinhando que sempre que ele — século XIX — não se sentia observado, surgia mais ousado, dito de outra forma, de cada vez que a funcionalidade directa das construções as dispensava da representação simbólica fornecida pelo academismo arquitectónico, mais próximas ficavam da abolição ética da mensonge des formes, a que se referia Van de Velde2. No que diz respeito aos países centrais da produção industrial, Grã-Bretanha, França, Estados Unidos e Alemanha, a ousadia do século estaria, assim, estruturalmente dependente da resposta às solicitações dos novos programas — naves de fábricas, pavilhões de exposição, estações de caminho-de-ferro — desde que essa solicitação fosse meramente utilitária, desde que não lograsse a satisfação de demasiados requisitos de representação simbólico-artística, ou seja, desde que não sentisse sobre si os olhos críticos do juízo arquitectónico, no sentido estritamente académico. Dois percursos se trilhavam então em simultâneo: o do desenvolvimento das potencialidades técnico-construtivas, os edifícios concebidos e tratados como se fossem máquinas, o primado dos engenheiros que os projectavam; e o das discussões acerca do estilo, ou do significado arqueo-
lógico-artístico dos grandes monumentos, da progressão lenta em torno do cânone clássico, e aí pontificavam os arquitectos. Sempre que estes dois caminhos se cruzavam, celebrava-se o tal casamento de conveniência e os resultados eram geralmente satisfatórios.

Em Portugal, contudo, nem o valor do significado arquitectónico enquanto representação do promotor, fosse ele político, cultural ou económico, nem o da expressão directa e material do programa justificavam a celebração de bodas ricas e glamurosas. O peso limitado, quase insignificante, do crescimento das forças produtivas industriais, agravado quer pela concorrência internacional, quer pela predominância da actividade comercial especulativa, emblematizada pelo aquartelamento sistemático dos interesses fundiários, não permitia o desenvolvimento de uma arquitectura que, tal como no mundo industrializado, pudesse finalmente pacificar as intermináveis discussões em torno da emulação historicista e afirmar-se como um valor produtivo em si mesmo e que, cumulativamente, representasse a pujança do modo de produção — de uma arquitectura do capitalismo.

Chegados então a 1910, a expressão dos novos materiais na arquitectura, embora também muito limitada, conseguia, apesar de tudo, ser notada, quando mais não fosse pela afirmação da diferença. Ora nas infra-estruturas, ora na resposta a programas mais ousados, do ponto de vista espacial e funcional, podem, apesar de tudo, ser referidos exemplos significativos. No Porto, no pólo urbano-industrial mais significativo, pontificava mesmo um pavilhão de exposições ao jeito inglês, em granito, ferro e vidro, de Thomas Dillen Jones, o Palácio de Cristal (1865); mas poder-se-iam ainda juntar as infra-estruturas, as pontes da Casa Eiffel, a Maria Pia, no Porto (1876--77) e a de Viana do Castelo (1878); ou ainda a de D. Luís, também no Porto, de Théophile Seyring (1881--86); em Lisboa, a expressão urbana das novas mobilidades patenteava-se à evidência com o Elevador de Santa Justa (1910), de Raoul Mesnier du Ponsard. Mas os amplos vãos cobertos também careciam da tecnologia associada ao novo material, desde logo, as coberturas das gares das estações de caminho-de-ferro, as do Rossio (1886-87), de José Luís Monteiro, e de Alcântara (1887), em Lisboa, e a de S. Bento (1896), de Marques da Silva, no Porto. Assim como as das grandes salas de espectáculo, do Coliseu (1890), adjudicada a uma empresa alemã, e a do Politeama (1912-13), de Ventura Terra, ambas em Lisboa, e a do S. João (1909), de Marques da Silva, no Porto; ou ainda de outros equipamentos institucionais e comerciais, os Armazéns Grandella (1891) e o Salão Nobre da Sociedade de Geografia (1897), de José Luís Monteiro, em Lisboa; o Palácio da Bolsa (1861), o Mercado Ferreira Borges (1885) ou a Galeria de Paris (1906), também de Marques da Silva, no Porto; os Armazéns do Chiado (1910), em Coimbra. O novo material aparecia, assim, de modo mais ou menos evidenciado, mais ou menos vestido, e ganhava alguma expressão no retrógrado contexto da indústria da construção em Portugal.

Era, contudo, uma evidência que não chegava para deslustrar a omnipresente e literata polémica em torno do carácter luso das edificações, ou, dito de outra forma, a reprodução portuguesa do manancial historicista que tinha dominado o debate arquitectónico-académico na Europa durante todo o século XIX. Embora genericamente associadas a um tronco comum, as crises ontológicas que, por essa altura, assolaram as culturas europeias foram de ordem diversa. Têm também sido estudadas segundo perspectivas diferenciadas, se bem que complementares. Por vezes, acentuam a vacuidade cultural da burguesia arrivista, a sua adaptação aos novos sistemas de poder. Outras vezes, incidem sobre a artificialidade, frequentemente forçada, da expressão territorial do confronto geo-político, sobre as divergências entre as identidades cultural e política dos mapas em construção. Outras vezes, enfim, condensam no cadinho romântico o panegírico de um passado belo, glorioso e emocionante.

Em Portugal, o terreno de propagação dessas ansiedades identitárias era muito fértil, tinha sido abundantemente estrumado com a decadência do império e, em progressão incessante, nele germinavam os frutos da contestação, sob as mais diversas formas. A saudade, a raiva contra as humilhações e a nostálgica evocação da história eram apenas algumas das mais expressivas temáticas que referenciavam o ideário artístico e cultural do País. O republicanismo português segrega, sob os auspícios da acção política, todo esse manancial de sentimentos colectivos que sucessivas gerações de intelectuais, cada uma à sua maneira, foram glosando. O exacerbado patriotismo que, em comum, caracterizava a essência dessas correntes de pensamento tinha um reverso — como nos conta Eduardo Lourenço —, uma cláusula oculta que se vai desvelando ao longo do tempo: significava, antes de mais, a consciência plena, contemporânea e culpabilizadora, de uma condição de desonrada inferioridade que o passado histórico, de todo, não merecia.

Se, no início, esse ideário ferido surge em bruto e se patenteia sob a forma de um hematoma interno, marca heróica de uma luta pelas causas predestinadas à glorificação, já mais adiante, na transição do século XIX para o XX, e durante o próprio perío-
do republicano, evolui gradualmente para uma feição hemorrágica assumida e ostentada, uma chaga transversal que funde empenho político e acção cultural, um penhor com uma presença tão forte que corre o risco de se esvair se não for, como era, permanentemente alimentado.

Ao longo do tempo, foram-se assim multiplicando as formas de expressão que clamavam pela necessidade de plasmar na arquitectura produzida as marcas do carácter identitário do país. A preocupação historicista e arqueológica foi contribuindo com alguma matéria para esse desígnio, mas foi Raúl Lino quem enfrentou a questão no melhor dos terrenos, o da obra construída com arquitectura de qualidade.

A Arquitectura do período republicano, propriamente dito, não deixa de respirar esse clima de ansiedade permanente, essa tensa dialética entre belo e útil, entre objecto e significado.

As Escolas de Belas-Artes reformulavam os seus planos de estudos e tentavam adaptar-se às novas realidades, sem perder o elo fundacional com a tradição académica. Eram aprofundadas as proximidades com o modelo parisiense, eram também reformuladas as matérias de índole técnica e cultural e ampliado o leque de disciplinas3. José Luís Monteiro toma posse como director em Lisboa, em 1912, e Marques da Silva, no Porto, em 1913.

No plano da obra construída durante o período republicano, as influências desfiavam-se assim entre o ecletismo da moda, amadurecido pelas mãos dos mestres formados em Paris, e a pulsão, pioneira e ensaística, de contribuir para a instituição de uma arquitectura genuinamente portuguesa.

Na primeira ordem de influências, pontificavam as presenças de Ventura Terra que, embora tendo uma obra construída, na sua maior parte, no final do período monárquico, vai ser, sem dúvida, marcante para a imagem da Lisboa republicana; de Norte Júnior, que maneja com eloquência o movimento volumétrico das fachadas, a articulação funcional e a ordem urbana, são deste período a Sede de A Voz do Operário (1913), o Prédio de Rendimento Nos. 206-218 da Avenida da Liberdade (1915-16) e os Armazéns da Sociedade Abel Pereira da Fonseca (1916-17), todos em Lisboa; de Marques da Silva, no Porto, com o Teatro de São João (1910-18), o Liceu de Rodrigues de Freitas/D. Manuel II (1918-32) ou os Armazéns Nascimento (1914-27); de Álvaro Machado, cujos insistentes jogos de escala em torno do neo-românico, como no Edifício da Sociedade Nacional de Belas Artes (1906-13), virão a ser suavizados na Casa do Campo Grande/Museu Bordalo Pinheiro (1914), ambas em Lisboa; ou mesmo de Adães Bermudes, talvez o mais literal na interpretação do gosto, com as escolas primárias (1911), o Banco de Portugal (1912), em Coimbra, ou o Bairro do Arco do Cego (1919-33), em Lisboa, ou mesmo o Palácio da Regaleira (1904-12), onde o experiente Luigi Manini concede asas à exuberância que lhe era solicitada pelo cliente, o magnata lisboeta Carvalho Monteiro, e no qual conta, tal como alguns anos antes no Palácio do Buçaco, com a mestria escultórica de João Machado e dos seus artistas da Escola Livre das Artes do Desenho, de Coimbra.  Mas podemos ainda considerar algumas aproximações, se bem que episódicas, ao gosto, ainda mais na moda, da Arte Nova, dita deste modo porque era de Paris, sempre de Paris, que nos chegavam os ecos desse surto inventivo que percorreu a Europa, usando diversas designações. Na maior parte, foram intervenções decorativas, votadas ao anonimato, podendo valer por todas elas a Casa Major Pessoa (1909), de Ernesto Korrodi e Silva Rocha, em Aveiro.

Da segunda ordem de influências, por seu lado, não pode deixar de ficar associada a acção cultural, mas sobretudo profissional, de Raúl Lino, personalidade que, na época, já estava assaz consolidada nos meios intelectuais do país, em particular naqueles que mais afinidades mantinham com o ideário republicano. A construção da sua própria casa, a Casa do Cipreste (1907-13), acompanha no tempo a evolução do turbilhão político, paradoxalmente enquadrada pela bucólica serenidade sintrense, num postal romântico trabalhado a rigor, com o vegetação silvestre da serra e o mar a enquadrar o fundo da paisagem.

Já no final do período republicano, os prenúncios e os primeiros ecos da Exposition Universelle des Arts Décoratifs et Industriels Modernes, que teve lugar em Paris em 1925, irão deixar as suas marcas no panorama nacional, quer na afirmação de uma nova geração de obras, quer na de uma nova geração de arquitectos. O Edifício Havas (1923-27), na Rua do Ouro, de Carlos Ramos, a Estação do Cais do Sodré (1925-28), de Pardal Monteiro, também em Lisboa, entre outros, constituem a ponta de um véu que estava prestes a revelar-se de modo mais explícito. Paralelamente, e no que diz respeito aos materiais construtivos, um outro material estava prestes a ascender ao esplendor da utilização massiva e generalizada, o betão armado, um material de resto já testado anteriormente em infra-estruturas e em algumas obras experimentais, como as pontes de Mirandela (1906), da firma Hannebique, ou a de Sejães, Oliveira de Frades (1907-08), dos Engenheiros Moreira de Sá e Malevez. Assumir-se-ia então como o substituto inabalável do ferro, cujo legado, por tardio, por esparso, ou por ambas as condições, não veio a ter uma expressão assim tão significativa no contexto da transição do século XIX para o XX. Novos tempos se anunciavam.

Mas em Portugal, num contexto mais genérico, a construção corrente era fraca. Se no meio rural era paupérrima, no meio urbano grassava a mediocridade, repetitiva e pouco ou nada inovadora no plano tecnológico. Exceptuavam-se algumas soluções engenhosas e higiénicas para a habitação operária, um punhado de bairros de habitação unifamiliar e algumas das “vilas” de Lisboa. Falar de obras de qualidade, portanto, significa quase sempre falar de momentos de excepção, alcançados em circunstâncias que, ora pela necessidade de afirmação social e cultural dos proprietários, ora pelas condicionantes específicas do programa, careciam do apelo ao profissional certificado ou à empresa competente.

Quando se refere a produção arquitectónica do período republicano em Portugal, surge inevitavelmente a ideia de um tempo relativamente curto, ao longo do qual foi mais significativa a reincidência dos temas e das ideias que já se arrastavam desde o século XIX — as “décadas obscuras”4 — do que a coincidência de obras que pudessem, de algum modo, ser evidenciadas a partir do contexto da reforma política, ou da convulsão social.

Mas também é verdade que o manancial simbolista e tardo-romântico da cultura portuguesa da época se constrói, essencialmente, a partir do desejo e, sobretudo, a partir da sua imponderabilidade objectiva. Se há, portanto, um objecto de desejo, talvez obscuro, que subjaz àquela mesma produção, esse poderá ser encontrado, de um modo mais directo, na centralidade dos avanços que constituíam os retrocessos em direcção à utopia histórica5 e, de um modo menos directo, nos descentramentos que constituíam o olhar inseguro e cauteloso para a realidade que, se bem que resguardada dos palcos académicos, se evidenciava com moderada insistência no universo concreto da transformação das cidades e do território, afirmando-se através da introdução de novos programas, de novos materiais, de novas técnicas construtivas. Num e noutro caso, há sempre um objecto de desejo, suficientemente obscuro para que pudesse ser estimulante, suficientemente precioso para que não pudesse ser alcançado.

 

O homem transviado tem de voltar atrás, ao local seu conhecido, para aí retomar a verdadeira via, o rumo que o levará ao seu destino. O que parece um regresso não é mais, afinal, do que um avanço.

 

Teixeira de Pascoaes

Arte de ser Português, imp. 1915

 

 

 

[1] Cf. Walter Benjamin. The Arcades Project. Trans. Howard Eiland and Kevin McLaughlin. Cambridge, Mass.; London : The Belknap Press of Harvard University Press, 2004, p. 152. Prepared on the basis of the german vol. ed. by Rolf Tiedmann.

[2] Cf. Sigfried Giedion. Space, Time and Architecture. Cambridge, Mass.; London : Harvard University Press, 2008, p. 294. Ed. orig. 1941.

[3] Cf. Maria Calado. A Cultura Arquitectónica em Portugal, 1880-1920: tradição e inovação. Lisboa :
FAUTL, 2003.

[4] Nuno Portas. A Evolução da Arquitectura Moderna em Portugal: uma interpretação. in Bruno Zevi. História da Arquitectura Moderna. Lisboa :
Arcádia, 1978. Reed. Nuno Portas. A arquitectura para hoje seguido de evolução da arquitectura Moderna em Portugal. Lisboa : Livros Horizonte, 2008.

[5] Cf. Paulo Pereira, dir. História da Arte Portuguesa: Do Barroco à Contemporaneidade. Lisboa : Círculo de Leitores, 1995, 3º vol., p. 517.


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